quarta-feira, 22 de julho de 2015

O amor supera tudo

Kelvin Rodrigo Carvalho
“Nada detém a inexorável marcha do tempo." Ouvi essa frase quando tinha 12 anos, nunca mais esqueci. Contrariando alguns filósofos, que recomendam que se viva o agora, hoje quero lembrar o passado, até porque, aos 69 anos, a nostalgia é algo natural.
Nasci no pós-guerra, naquela explosão de nascimentos na qual os soldados tiveram participação direta. Minha mãe se apaixonou por um deles, pracinha da Força Expedicionária Brasileira. Foi ele quem me disse a frase acima quando já estava se despedindo desse mundo. Meu pai, apesar da pouca convivência, me ensinou muito, até hoje sigo seus exemplos. Um deles é ser colorado, não que seja propriamente um exemplo, mas o que essa escolha me trouxe é algo que quero compartilhar com vocês.
Era 1975, eu estava embriagado e extasiado comemorando o gol do Don Elias Figueroa. No rádio ouvia o Haroldo de Souza gritando: Colorado! O grande campeão do Brasil! Na euforia, resolvi correr pela Andradas enrolado numa bandeira vermelha. Acabei tropeçando e beijando um muro. Fui recuperando a consciência ao som de uma voz muito doce, de nuances bem definidas, diria que se anjos tivessem voz seria algo muito semelhante àquilo. Ainda zonzo, pude reparar no brilho do seu rosto. A pele iluminada por um raio de sol que se despedia no horizonte, hoje até penso que devia ser o mesmo do “gol iluminado”. Ela era linda. Levei alguns minutos até que pudesse me recompor e finalmente balbuciar um obrigado. A resposta que veio após o meu agradecimento foi um sorriso. Me apaixonei. Entretanto, antes que pudesse perguntar seu nome duas amigas pegaram-na pelo braço e entraram em um carro, pareciam atrasadas para algo.
Era 1975, eu estava embriagado e extasiado comemorando o gol do Don Elias Figueroa.
A vida seguiu, o tempo passou e quatro anos mais tarde lá estava eu no Beira-Rio. Dessa vez, diferente de 75 e 76, quis ver ao vivo a final do campeonato. Foi incrível! Saí do estádio e fui para um restaurante comemorar com os amigos, em nada lembrava o maluco de alguns anos antes. Escolhemos uma mesa no canto, tinha uma parede de vidro muito bonita, dava para ver todo o movimento da rua, toda a vida que por ali passava. Entre uma e outra taça de vinho fomos lembrando daquele fantástico time dos anos 70 que ganhou tudo. Em determinado ponto da conversa o assunto foi contar onde havíamos comemorados os feitos relevantes de anos anteriores. Naturalmente lembrei da minha bela. Antes que eu pudesse terminar a minha história um som muito agradável ganhou os ares daquele local. Tamanha era a pureza que ficamos em silêncio, ninguém ousou interromper. Levantei-me e fui em direção à origem da melodia que se escondia atrás de uma coluna. Quando finalmente consegui enxergar do que se tratava, quase caí. Era ela, por Deus, era ela.
O destino tratou de nos aproximar mais uma vez e em circunstâncias tão parecidas. Eu estava às suas costas, ela não tinha como me ver, mas eu, em compensação, podia observar cada detalhe de seu corpo. Seus dedos eram ágeis, percorriam as teclas de um imponente piano que parecia sorrir ao ser acariciado por aquelas mãos. Assim que a música terminou não consegui conter a vontade. Me aproximei e me apresentei, depois de alguns segundos, que mais pareceram anos, ela reconheceu-me, levantou, me abraçou e me surpreendeu com um beijo. Inesquecível. Para minha felicidade ela também guardara a minha imagem e o sentimento de amor à primeira vista. Algo muito forte havia nos ligado naquela tarde de dezembro de 75 e não foi o muro, pelo contrário, foi algo que não serviu de barreira e sim de ligação.

Minha mulher era e é uma grande pianista, por inúmeras vezes tocou em bares e locais que eu frequentei, mas foi naquela noite de 79, antes que a década acabasse, que fomos nos reencontrar. Casamos, tivemos duas filhas, lindas, e agora estamos a envelhecer juntos. Às vezes me pego pensando na frase de meu pai, que citei a vocês lá no início, e tenho uma enorme vontade de voltar no tempo só para dizer a ele: pai, há sim algo que detém o tempo, o amor. Esse é eterno!

Um lugar para se reencontrar

Robson Almeida Girardon
Carla e Henrique eram dois apaixonados. Daqueles que andam com a foto um do outro na carteira e fazem juras de amor em público. Poucas vezes eram vistos separados. Se ele ia visitar os amigos, ela estava junto. Se ela fosse escolher uma blusa nova, lá estava ele pra ajudar na escolha.
Eles compartilhavam das mesmas coisas, comidas, ambientes e companhias. Até mesmo na paixão por piano combinavam. Eram frequentadores fiéis de exposições e feiras sobre música. Carla e Henrique trabalharam por dois anos e compraram juntos um piano feito sob encomenda. Era um modelo vertical único, com detalhes pensados especialmente para uso do casal.
No inverno, o programa favorito era ficar em casa ensaiando duetos para o Natal. Também era a época ideal para ouvir as coletâneas compradas na última viagem que fizeram a Montevidéu. Visitavam o Uruguai pelo menos uma vez ao ano, pois foi lá que um dia eles se conheceram.
Ele levou fé nos olhos azuis da moça e correspondeu.
Na época, ele tinha 18 anos e fazia sua primeira viagem internacional. Ela com 21 anos já era pianista profissional e viajava ao país vizinho com mais frequência. Era uma noite fria e a sessão musical estava completamente cheia. Antes mesmo de começar a apresentação, Carla já botou o olho em Henrique. Ele levou fé nos olhos azuis da moça e correspondeu. Em seguida tiveram uma longa conversa, onde pareciam amigos de longa data. Após os primeiros diálogos, sobrevieram sorrisos e abraços. O restante você imagina.
Já se foram alguns anos e, como acontece com a maioria das pessoas, não perceberam o tempo passar. Por qualquer inconstância da vida, se separaram. Pela primeira vez, depois de muito tempo dividindo a mesma rotina, cada um vai pro seu canto. Fica claro para ambos que é preciso reaprender tudo de novo. Atos simples do cotidiano agora são vividos de forma diferente. E a paixão pelo piano? Essa parece que se encerrou junto com o relacionamento. Daí em diante, é preciso que cada um reaprenda a cuidar de si próprio. Eles seguem em frente, cada um do seu jeito, por caminhos diferentes.
Aquele piano que compraram e mostravam a todos na sala de estar, já é parte do passado. Para Carla e Henrique, o piano estava relacionado a tudo que viveram juntos. Decidiram doar para uma igreja. Lá estará para sempre materializando os anos dourados que tiveram. Agora, eles precisam viver o presente, construir o futuro, encontrar novos caminhos, novos lugares, novas pessoas e hábitos diferentes de ser feliz.
Talvez por isso hoje em dia tanta gente queira refazer o que já foi feito.
Não é fácil pra ninguém recomeçar. A arte de deixar as mágoas de lado, sacudir a poeira e seguir em frente é algo que não se aprende em cursinho. “Somos eternos prisioneiros do tempo”. Talvez por isso hoje em dia tanta gente queira refazer o que já foi feito. Retomar uma relação antiga, por exemplo, é algo que assusta. Os tempos são outros. As coisas mudam e as pessoas também.

Carla e Henrique guardam na memória tudo o que se passou. Agora seguem para uma nova etapa de suas vidas. Dificilmente viverão novas histórias juntos. Mas ainda estão aqui. Em breve encontraram outro hobby, um novo instrumento musical para ocupar o tempo e uma outra paixão. E se a saudade insistir em procurar pelos dois, eles sabem exatamente “onde se reencontrar”.

O marquês de Villeclaire

Daniele Angnes
Três dias após a morte de Edard um homem bateu na porta. Mafalda correu para abrir. Era alto, esguio, vestia um terno preto, cachecol, tinha ombros largos, aparentava ter pouco mais de 30 anos. Pela fresta da porta do meu quarto conseguia vê-lo. A cada passo que dava, fazia ranger o piso de madeira velha, olhou o cômodo, por um momento achei que tivesse me visto. Senti um arrepio subir pela espinha. Os olhos verdes, profundos, avaliaram a casa sem mobília. Apenas a lareira, com fogo quase apagado, e um piano velho ocupavam a sala. Nunca entendi por que Edard guardava aquilo, nunca soube tocar e há anos não funcionava.

- Senhora Villeclaire!

Mafalda chamou. Pobre Mafalda! Só continuava ali por consideração, pois há meses não recebia pelo seu trabalho. Desci as escadas e pude ver que ele trazia um documento em suas mãos. Um arrepio gelado passou por mim. Com ar formal, estendeu a mão para me cumprimentar. Com um leve sorriso no canto da boca, beijou o dorso da minha. A barba, com alguns fios grisalhos, fez cócegas.
Os olhos verdes, profundos, avaliaram a casa sem mobília. Apenas a lareira, com fogo quase apagado, e um piano velho ocupavam a sala.

- Bom dia, Senhora! Eu sou Robert Huisman. Meus sentimentos pela perda do seu esposo. Apenas ouvi o que ele falava. – Acredito que a Senhora já imagine o que venho fazer aqui.

Edard tinha o péssimo hábito de apostar. Várias vezes voltava tarde, machucado e no outro dia alguém vinha até nossa casa cobrar a dívida. Até o dia que não voltou mais. Mal tive condições de arcar com as despesas do funeral. 

- Bom. Ele estendeu o documento para mim. - Na noite em que seu esposo faleceu, ele deixou este documento como garantia na mesa de apostas. Acredito que se trate de algo familiar, gostaria que a Senhora lesse.
Peguei aquele papel, abri o selo, desenrolei e comecei a ler. Havia me esquecido de como a letra de Edard era terrível. Com dificuldade fui decifrando o que estava escrito. 

Desde que fechou a fábrica de tecidos, uma das mais bem-conceituadas da cidade, Edard passava as noites em clubes de aposta. Muitas vezes tivemos que vender móveis e propriedades para arcar com as dívidas. A única coisa que Edard insistia em manter naquela casa era aquele piano velho. As teclas já estavam amareladas, só o pó se acumulava sobre ele. “É a única lembrança de meu pai”, dizia Edard. Senti o vento frio entrar pelas frestas da casa. A pequena chama da lareira se apagou e Mafalda correu para pegar mais lenha e acende-la novamente. Voltei a me concentrar na leitura. 

- Infeliz! Desgraçado! 

Pude perceber o olhar de espanto daquele homem. Nunca o havia visto pela cidade. Será que era novo? Mesmo sendo, dificilmente conheceria. Quase não saía de casa. 

- Está tudo bem, Senhora Villeclaire?

Entreguei o documento a ele. Uma expressão que mistura desaprovação e excitação tomaram seu rosto. Senti novamente um arrepio subir pela espinha. Em sua última aposta Edard havia dado a casa com tudo que havia dentro, incluindo sua “amada” esposa e seu piano velho, como garantia. Sempre soube que Edard era irresponsável, inconsequente, mas chegar a este ponto. Não consegui responder nada àquele homem. Robert se despediu, mais uma vez com um beijo no dorso da minha mão. Abri a porta, ainda sem saber o que falar. A neve se acumulava na escada, o frio era intenso. Fechei a porta e fui até o piano. Apertei em uma tecla, nada. Tentei outra, nada. Mais uma, ao menos uma irá funcionar. Um tilintar saiu dela. Apertei novamente e o mesmo som saiu dela. Não era o som de uma nota. Era como se alguma coisa estivesse presa aquela corda. Nenhuma das outras teclas funcionou, apenas aquela. Cada vez que tocava aquela tecla o som ecoava pela casa.
Entendi por que Edard nunca quis se desfazer daquela coisa velha.

Chamei Mafalda, que me ajudou a abrir a cauda do piano. Entendi por que Edard nunca quis se desfazer daquela coisa velha.  Assim ele até parecia bonito. Edard havia guardado naquele piano as joias que pensei que há muito tinha se desfeito. Todas as joias da família. De certa forma sempre soube que as apostas seriam seu fim, mas não seria o meu. Me despedi de Mafalda e peguei o primeiro trem para o interior. Finalmente poderia ter a vida que escolhesse. 


Sofia

Raquel Pedroso Souza

A menina-mulher que sempre quis ser

I.            Rebeldia
Uma mulher com rosto de menina, com seus olhos verdes, chama atenção de qualquer um que a veja. Sem aparentar quem ela realmente era, sempre se mostra ser uma bela surpresa. Com cílios enormes, o delineador contornando os olhos. O cabelo solto, fazendo aquele estilo desarrumado. Uma calça jeans e uma camiseta branca estampada com uma banda qualquer. Ela não era uma mulher qualquer, não era qualquer camiseta de banda de rock, não era qualquer jeans. E sim, a rebeldia que ela respirava.
Rebeldia sem padrões. Sempre sendo ao contrário de tudo. Sendo uma transgressão. Transgredindo as leis. Sem limites. Entre drogas, com um cigarro na mão, filosofa sobre a revolução. Tatuagens à mostra, um crucifixo pendurado no peito. Inocência e transgressão no mesmo corpo. Crescida entre amor e ódio. Amada por uns e abandonada por outros.
Eis que de repente seus olhos brilham...

II.            Revolução
Inicia a sua revolução, deixando de filosofar. Sendo amada por todos, ela incita a rebeldia. Luta contra os valores de uma sociedade corrompida. Se impõe contra os que lhe impõe a lei. Quebra todas as regras. Surge ela imponente em meio à multidão para liderar a sua própria revolução. Bradando palavras de ordem, Sofia é imponente aos demais. Crê que a sua ideologia é a mais importante e convida aos demais para a defenderem ao seu lado.

III.            Liberdade
Deusa da liberdade.
Liberdade que não é liberdade.
Controlada, vigiada, perseguida por todos.
Sobrevivendo a tudo.

IV.            Contra a conspiração
Don’t call me by name!
Don’t call me!
Ela estava lá, sentada, ferrada, acabada tentando entender. Que porcaria de conspiração era aquela? Quem foi que armou aquilo? Desde quando ela foi condescendente? Traída pelos seus. Espera a revolução acabar.
Ira e revolta andavam juntos naquele pequeno e louco pensamento. Grosseira e hostil, será até eles caírem. Esqueceram quem ela sempre foi. Sentimentos traídos, ideias roubadas. Mas o caráter sem ser corrompido. Eles realmente não conheciam a sua anarquia. Não sabiam o quão rude ela pode ser. Quão má pode ser. Quão vingativa pode ser.
“Arrependei-vos enquanto há tempo”
Porque a sua ira se revoltou. Finalmente a sua rebeldia voltou-se ao princípio.
Todos cairão.
Call me by name
Call me
Call me by the name of death
Call me by the name of Sofia 
Perdida e sem chão, ela olha o horizonte e decide se levantar novamente, assumir tudo que sempre foi dela.

V.            Decisão
Ser ou não ser? Eis a questão.
Vencer ou perder? Qual lado?
Certo ou errado? Quem seguir?
Rebeldia ou submissão? Qual a sua decisão?
Motivada a não baixar a cabeça para pessoas que pensam ser superiores.  Ergue-se e retoma a sua revolução. Seguida por uma multidão, Sofia se vê maior de antes de ter caído. Seguidores bradam a sua ideologia pelas ruas.

VI.            A sua ideologia
Puseram a sua ideologia à prova, como se ela fosse uma qualquer.
Rebelde, sim! Insolente, sim, mas não no seu real sentido.
Soberana sobre os outros, a inteligência é o seu maior trunfo.
Não há força que a vença. Não há razão que não seja a sua.
A dona da verdade, sempre estando com a razão.
A sua ideologia, a sua rebeldia. Compararam-na com reles miseráveis, que com força e violência, se dizem rebeldes. Atacam as pessoas fisicamente, meros marginais. Nunca fizeste apologia à violência, jamais dissera que a força bruta prevalecia. Quanta ignorância compará-la. Insultando a sua inteligência. Renova os seus conceitos e afasta os traidores. Pessoas que se diziam companheiros, mas que no fundo queriam ser iguais a ela. Jamais confiará tão piamente nas pessoas de novo. Usa o poder das palavras como arma, age racionalmente.
Ideologia de lutar com palavras.

VII.            Seus amores
Ela é uma guerra, incompreensível, insaciável.
Ela é uma incerteza.
Entre o amor e o ódio.
Entre apegos e desapegos.
A infelicidade do amor, destruidora de sentimentos. Ela parte corações, ela domina suas paixões. Ela os devora. Todos caem aos seus pés, imploram por algum sentimento. Desejam seu o seu alento, querem o seu desapego. Jamais se rendeu aos seus sentimentos, incapaz de amar. Jamais pediu por um amor. Sem fronteiras, sem sentimentos.
Realmente tornou-se inalcançável. Prazeres concedidos, amores corrompidos. Por que pedem mais do que ela pode oferecer? Por que amar significa sofrer? Amores vêm e vão. Adora ser masoquista. O seu celibato a faz feliz. Pratica o seu masoquismo.

VIII.            Esquecimento
Abandonou a sua luta.
Desistiu da batalha.
Caiu na triste vida da rotina.
Cresceu, e se vê no mundo onde os adultos trabalham e constroem uma vida social. Cedeu à tentação de uma sociedade caída. Abandonou a sua revolução, largou o cigarro, não tem mais vício em drogas, mudou completamente, nem o seu piano, querido piano, não toca mais. Deixou-se levar pela vida que tanto lutou. Comprou casa, comprou carro, largou os jeans e as camisetas rasgadas por um terninho de uma empresa multinacional. Acomodou-se. Perdeu-se.

IX.            Ressurgindo
Abandonou tudo o que a cercava, fazendo-se só.
Perdida entre pensamentos e sentimentos.
Ressurge em meio à confusão.
Pode tirar tudo dela, mas, nada se pode esperar.
Esquecida no fundo escuro, à espera que a vitalidade ressurja.
Depois de negar a vida e os amigos, caiu na obscura rotina. Se desfez de tudo que cultuou, se recoloca em meio à sua vida. Clama com desespero o abandono da rotina. Não consegue se desacomodar. Vida simples, sem alegria, sem ânimo para viver.
Ressurgindo em meio ao caos. Quanta alegria, Sofia! Se refaz, se reabitua. Toma para si o seu lugar. Se possui, e reinventa a sua ideologia. Revoltando e revoltada, ressurge ela, em meio ao abandono e ao esquecimento. Prepara-se para reviver o que jamais ela própria viveu.
Ideologia de vida
Rebeldia, a base de tudo
Reavendo o seu fôlego de vida
Ela inicia o seu retorno

Breve triunfo virá

André Brasileiro

Paola Brocardo Guimarães
André Nascimento, 17 anos, pobre, sem pai nem mãe, criado pela vó desde que nasceu. Cresceu em uma comunidade bem comum para seu perfil, a periferia. Divide o Teto com mais dois netos de Maria, sua vó, que tem mais dois filhos. Maria é doméstica. Trabalha na região nobre da cidade de São Paulo, na casa de uma família tradicional. Dá duro para sustentar a família com seu salário e auxílios do governo. O Marido ela visita semanalmente no presídio.
Mesmo lugar que o pai de André, só que esse sem visitas. A mãe de André morreu logo após dar a luz. Foi vítima de um estupro na noite que voltava da escola. Tinha apenas 15 anos.
A vida não andava fácil para André. A escola ele nem frequentava mais, ouviu dizer nos becos que era coisa de burguês. Sem nem ao menos o fundamental completo e seu perfil peculiar e duvidoso, atraía os olhares mais hostis, o que o deixava chateado e bem violento.
Mas André também tinha um coração. E nele morava Eduarda, sua tia de apenas 10 anos. De cabelo enroladinho, olhos grandes e intimidador, e dona de uma doçura encantadora que era impossível não adorar. Gostava de tomar sol na varanda principalmente quando a chuva adentrava a sua casa nas noites mais severas. Gostava do silêncio ainda mais quando se ouvia tiros bem pertinho da janela do seu quarto. Gostavam de balet, bonecas e de piano. Assistiu alguma vez um filme no qual o protagonista poderia salvar a vida da sua família se tocasse piano como nunca. Ela tentou explicar a André a história, mas sem prender muito a atenção do sobrinho.
Queria se sentir gente. Mas precisava de dinheiro e isso ele também não tinha. 

André queria sair fazer festa, comprar roupas legais que todo mundo usava. Queria se sentir gente. Mas precisava de dinheiro e isso ele também não tinha. Assim como emprego e estudo, o que dificultou bastante. Até tentou arrumar trabalho. Mas depois de tanto ‘não’ com olhar de indiferença, decidiu que ia se virar.
Começou a roubar. André roubava mini mercados, lancherias, botecos, roubava carteira na praça e bolsas no centro. Começou a ganhar dinheiro e a usar drogas. Se foi o dinheiro todo em cocaína e maconha e os roubos já não davam conta. Começou a investir em roubos maiores, dinheiro alto. Bancos, relojoarias, lojas.

Foi numa dessas que uma loja tinha exposta na vitrine um piano. Bem como Eduarda descrevia, e ele via tão longe da realidade deles. Distraído pelo encanto e lembranças, foi morto a tiros pela polícia, bem em frente à vitrine. Olhando para o piano e pensando que aquilo poderia salvar a vida de Eduarda, porque a dele nessa guerra de classes já foi perdida.

Sob um som estranhamente familiar

Luiza da Silva Gomes dos Santos
Amélia estava sentada no sofá à beira da janela da sala quando ouviu as primeiras notas de Clair de Lune vindas de um piano. Talvez o som viesse do apartamento ao lado. Sentou-se no chão com a cabeça encostada na porta para ouvir melhor de onde aquela delicadeza surgia. O som era claro, firme e delicado ao mesmo tempo. Parecia o som de pequenas pegadas nas nuvens. Algo tão bom que talvez até Debussy sentisse inveja de tamanha doçura. Tocava e repetia. Quando se deu por conta as horas já haviam passado aos montes.
A noite chegou e Clair de Lune ainda tocava como antes. Soava pelos corredores, pela sala, por Amélia. Parecia que tocavam exclusivamente para ela. Como um concerto exclusivo em sua sala. As notas eram tão evidentes e contagiantes que tomaram conta de Amélia, pareciam grudadas a seus ouvidos. Aquele som era estranhamente familiar. Ela já havia ouvido essa música muitas outras vezes antes.
Sem pensar, abriu a porta e, no escuro do corredor, Amélia perseguiu o som até se dar conta de que as notas não saíam de nenhum apartamento ao lado ou próximo. O som a chamava, era como se as notas pedissem por ela, falassem seu nome. Quanto mais ela se distanciava de sua casa, mais baixo era o volume. Quem sabe em outro prédio? Amélia decidiu voltar. Enquanto subia as escadas se deu por conta que de a música vinha de seu apartamento. Subiu as escadas correndo, com medo.
Com violência abriu a porta de seu apartamento, a música parou de repente. 
A cada degrau que subia a música aumentava e aquele barulho que antes era doce e tranquilo aos poucos a irritava e amedrontava mais. Com violência abriu a porta de seu apartamento, a música parou de repente. A teoria de que a música partia de seu lugar se concretizou ao puxar a porta do quarto. Havia um piano parado no meio de seu parto. Fechado, parado, ninguém o tocava. Apenas a música que saía dele por horas ainda continuava ali.

Sentou-se à frente do piano e o abriu. Enquanto seus dedos percorriam sem parar pelo marfim, Amélia deu-se conta de que quem tocava a música era ela mesma. Ao mesmo tempo em que descobria sua loucura pela partitura de Clair de Lune, ela esquecia de tudo que acontecia em um misto de medo e desatino. Sua cabeça dava voltas e voltas e aos poucos sua consciência e sua vida se perdiam na tranquilidade e na loucura que a música de Debussy havia dado a ela. 

A viagem do desesperado

Alexandre Flôres Pereira
Certa vez vagando pela floresta, me perdi dos meus amigos. Sempre fazíamos nossas trilhas, em busca de aventuras e diversão, era o que nos interessava, a curiosidade nos atiçava, não havia muita coisa na época, não existia a tecnologia de hoje que pudesse nos prender em casa.
Naquele dia o céu fechou, uma tempestade parecia começar, por um descuido me perdi, procurei proteção, abrigo, saí da trilha, seguindo apenas meu instinto. Certo momento, tropeço numa pedra e caio no chão, então olho para frente e avisto uma casa abandonada.
Com a chuva que estava prestes a começar, adentrei no local, estava tudo escuro e cinzento, teias de aranha pelas paredes. Até aí nada me impressionava, era o que se esperava do local, havia um piano empoeirado, passei por ele e subi as escadas, me deparei com três portas.
As portas rangiam com o bater dos ventos que entravam pela janela aberta, nesse momento escuto uma voz estridente pronunciando: “Ié ié”, até que surge um espírito serelepe, um menino em corpo de homem que diz: “Eu sou Sergio Malllandro, e você está diante das Portas dos Desesperados”. Fiquei extasiado com o que estava acontecendo, não estava entendendo.
No instante em que abro a porta, vejo outro corredor, as paredes se mexiam, criavam imagens familiares para mim, lembranças da infância e acontecimentos que me marcaram na vida.
“Você está num caminho sem volta, uma dessas portas é o caminho para sua casa, as outras vão te levar para uma dimensão paralela”, a escada atrás de mim havia sumido, parecia que eu estava no espaço, num lugar escuro cheio de estrelas e cometas passando. “Escolha logo, qual porta você quer?” Cada porta tinha uma cor (azul, verde, vermelha). “Vou na verde”, eu falei.
No instante em que abro a porta, vejo outro corredor, as paredes se mexiam, criavam imagens familiares para mim, lembranças da infância e acontecimentos que me marcaram na vida. Aquilo tudo me deixou confuso e sem entender o que estava acontecendo, “Você pode reparar um erro do passado, gostaria disso?”, disse o espírito que saltitava de um lado para o outro.
Quem não gostaria? pensei eu. De repente acordo e estou presente na minha casa, uma semana antes do atual momento, encontro meu irmão no pátio de casa que me chama: “Ei, vamos jogar bola?” Ele chuta a bola que ganhei de aniversário em direção à rua, um carro passa por cima dela e a murcha.
De repente meu irmão muda de forma, e vira o Sergio Mallandro.
Fiquei muito brabo com o acontecido, fui em direção ao meu irmão e dei um soco no seu braço, ele chorou e saiu correndo em direção a casa. Pego minha bola, entro em de casa, ele estava sentado no sofá. Digo para ele: “Desculpa, mano, sei que não foi de propósito”. Ele me responde: “Eu também errei, sou um perna de pau mesmo”. Demos muitas risadas.
De repente meu irmão muda de forma, e vira o Sergio Mallandro. “Então, não é melhor pedir desculpas?”, nisso eu volto para o corredor, já com as escadas em seu devido lugar. Sergio Mallandro surge novamente e fala comigo: “Lembre-se, nunca afaste quem é importante de sua vida, repare seus erros e aprenda com eles. Agora pode ir embora”.

Desço das escadas e saio da casa, encontro meus amigos, nos abraçamos: “Cara, onde você estava?”. Respondi: “Me perdi na trilha, mas está tudo bem, vamos para casa”. Tudo o que aconteceu serviu de lição, seguir uma nova vida com atenção.